A tradução do capítulo "Das Grundlos" do livro "Volcks-Sagen" de Johann Konrad Christoph Nachtigal foi feita e tem todos os direitos reservados por Victoria Fattore. Se desejar publicar esta tradução em outro lugar, por favor entre em contato comigo através do endereço contato@bibliotecaobscura.com.
O Sem-fundo
"Perto da extremidade norte da cordilheira de Hakel vemos, no declive da montanha, uma grande dolina parcialmente cheia de água e coberta de juncos em suas margens, cujo fundo não pode ser encontrado em seu centro nem mesmo com a vara mais comprida. Por isso ela é chamada, com razão, de Sem-fundo."
Muitos séculos atrás, na época em que toda a região ainda era coberta por florestas, havia ali um castelo em meio ao bosque. Nele se reuniam cavaleiros ladrões, um perigo para todos que estivessem nas redondezas. Neste castelo eles dividiam os seus roubos e as colheitas dos poucos habitantes da área, que eles obrigavam a trabalhar até sangrar, especialmente quando havia algum banquete. É para este local que eles traziam seus prisioneiros e as filhas mais belas dos camponeses, que eles sequestravam para trabalhar em seu castelo.
Aqui os cavaleiros andantes banqueteavam-se e dançavam ruidosamente por longos dias e noites. Andarilhos distantes frequentemente ouviam, entre o ruído dos címbalos e trompetes, os aterradores gritos abafados daqueles que eram assassinados nas cavernas subterrâneas. Não era possível oferecer ajuda, pois poderosos cavaleiros aliados protegiam o castelo com seus mercenários. Porém os gritos da violência elevavam-se aos céus, e o dia da vingança se aproximava!
Uma vez, em um nebuloso dia de outono, um cavaleiro vindo da longínqua França perdeu-se nas montanhas do Harz junto ao seu escudeiro e chegou ao castelo escondido no meio da densa floresta, afastado da estrada habitualmente usada pelos viajantes. A noite já tinha chegado, e em volta da muralha do castelo não havia pessoas nem animais. Porém do interior eles ouviam a balbúrdia desenfreada de homens bêbados e barulhentos, e o som de cornetas e trompetes acompanhado do uivo de grandes cachorros. Os viajantes bateram e gritaram em um dos portões traseiros no meio do matagal, mas por sorte ninguém ouviu seu clamor ou suas batidas, pois uma tempestade rugia pela noite e a chuva golpeava os telhados.
Cansado de gritar, o escudeiro procurou um abrigo. Tateando e esgueirando-se pelo bosque ele finalmente encontrou uma depressão côncava perto da entrada do castelo, onde havia uma manjedoura e um cavalo que comia. Feliz com a sua descoberta, ele guiou seu amo e seus cavalos até o local, onde deixou os animais deliciarem-se com o pasto que enchia a manjedoura.
O cavaleiro estrangeiro, cansado da viagem longa e fatigante, logo dormiu sobre um pequeno celeiro que encontrou em um canto da caverna. A música distante e o monótono tamborilar da chuva fizeram com que adormecesse profundamente.
O escudeiro, porém, não teve a mesma sorte. A preocupação com os cavalos e seu estômago vazio o deixavam acordado, e a música o fazia imaginar o banquete anterior à dança, o que pouco servia para acalmá-lo. Então, a cada minuto que passava, ele se sentia cada vez mais aflito dentro da caverna escura. Ele tateou todo o espaçoso estábulo abobadado à sua volta onde estava com seu amo, mas não econtrou nada fora o pasto abundante dos cavalos, dos quais facilmente cabiam vinte nesse espaço. "Quem mora aqui? - A quem pertence o cavalo e o pasto que você deu para seus cavalos? O que vai acontecer se os criados daqueles que dançam voltarem, ou se esses criados estiverem dormindo no feno e acordarem? - Será que aqui moram ladrões e assassinos?" Assim milhares de preocupações afligiam a sua alma, e ele não conseguia dormir.
O medo crescente fez com que se aproximasse do seu senhor. Finalmente ele se jogou sem ânimo sobre o feno, mas caiu nas profundezas. Abaixo dele quebraram-se algumas vigas apodrecidas e ele caiu por alguns pés para dentro dew uma caverna subterrânea, e seu rosto e suas mãos tocaram - o horror! - caveiras e ossadas espalhadas pelo chão.
Com altos berros ele se levantou desse lugar amaldiçoado, rastejou tremendo para cima e cambaleou em direção à porta do estábulo sem pensar em seu amo ou os seus cavalos. Lá se sentou à frente dos arbustos que rodeavam a entrada e foi açoitado pelo vento e molhado pela chuva até bater os dentes.
Gradualmente, as cornetas e os trompetes emudeceram, e logo havia à sua volta um silêncio total que o assustava ainda mais. Agora o relógio da torre bateu as doze, e todo seu cabelo ficou em pé. Com pavor ele esperava a aparição dos fantasmas dos assassinados. Assim ele não teve coragem de olhar para cima, para a frente ou para trás. Ele ficou sentado encolhido e cobrindo os olhos com os dedos.
De repente, alguns raios de luz iluminaram os arbustos como uma tocha acesa - e, em um piscar de olhos, tudo ficou escuro. Muitas vezes ele achava que ouvia o chacoalhar de corrente e gemidos abafados; ele escutava com atenção - e de repente tudo voltava a ficar em silêncio. A cada segundo ele esperava morrer de medo, porém ele conseguiu sobreviver a todos esses horrores.
Finalmente, depois de uma longa espera fútil, o relógio da torre tocou: uma hora. As nuvens se partiram; alguns raios de luz da lua caíram sobre ele através dos arbustos e a esperança e a vontade de viver retornaram ao seu coração. Em breve toda a lua estava visível em seu esplendor, no céu alegre e sem nuvens. Agora o escudeiro teve coragem de dar alguns passos para a frente, para ver onde estava.
Logo ele encontrou um muro não muito alto, sobre o qual erguiam-se várias torres pequenas, e não muito longe do estábulo, coberto por majestosos carvalhos, ele achou um portão de ferro que bloqueava a entrada para o pátio do castelo. Com cada vez mais coragem (pois a hora dos fantasmas tinha passado e a lua brilhava) ele se aproximou, com leves passos, do portão e olhou para dentro do pátio, onde viu em sua extremidade a pequena torre que levava para o salão dos cavaleiros.
No meio do pátio havia um pilar de Rolando com os braços abertos. De repente uma cena maravilhosa e estranha foi exibida para o escudeiro. Três grandes galos desceram de forma majestosa do telhado redondo da masmorra e atravessaram lentamente o pátio, na direção da estátua que carregava uma espada e vestia uma armadura. Então levantaram voo ao mesmo tempo. O maior deles, mais alto e com uma plumagem mais cheia que uma águia, pousou na cabeça do pilar de Rolando, e os outros encontraram seu lugar sobre os cotovelos da estátua. Logo cantaram três vezes em uníssono, de modo que seus gritos ecoaram pelo pátio e pela floresta próxima. Depois tudo ficou em silêncio. Então ouviu-se um clamor abafado que parecia vir de uma grande distância: "Ai! Ai! Ai!" - Os galos cantaram sete vezes com maior intensidade e "Ai! Ai! Ai!" soou pela segunda vez. - Os galos cantaram nove vezes com ainda mais volume, e o maior deles levantou voo e gritou: "Ai! Ai! Ai! Hoje o castelo dos ladrões irá cair!"
Tropeçando, o escudeiro voltou ao estábulo coberto e sacudiu tremendo o seu amo, que estava deitado como se estivesse morto, até que este finalmente acordou. Tremendo como vara verde, o escudeiro contou-lhe dos acontecimentos inacreditáveis enquanto colocava o bridão nos cavalos selados.
Balançando a cabeça, o cavaleiro francês acusou seu escudeiro de ser mentiroso, porém acreditou no relato e estremeceu ao ouvir o "Ai! Ai! Ai!" - Sem perder tempo, ambos afastaram-se com pressa através dos arbustos e sebes até encontrar a estrada aberta.
Agora chegou a tão desejada aurora, porém o sol estava escurecido como coberto com um véu fúnebre. Logo eles viram ao longe as brilhantes pontas das torres de Magdeburgo. Então ouviram de muito longe na retaguarda um ruído abafado parecido ao de trovoadas distantes. Eles olharam para trás e viram como se erguia uma densa coluna de vapor similar àquela de um vulcão. - "Ah! exclamou o escudeiro, certamente lá foi derrubado o castelo infame! Do lago de enxofre, onde caíram os malfeitores, sobe o vapor!"
"Venha, disse seu amo, vamos voltar para lá para observar os acontecimentos insólitos; no estábulo deixei para trás minhas luvas, o presente de despedida de minha amada." - O escudeiro, porém, negou-se veementemente. Furioso e vociferando o cavaleiro cavalgou sozinho em direção à coluna de vapor. Depois de um tempo o escudeiro o seguiu tremendo, mantendo uma grande distância.
Após algumas horas eles alcançaram a região onde se elevava o vapor. O cavaleiro ordenou ao seu escudeiro que cavalgasse para dentro da nuvem de vapor para buscar as suas luvas. O escudeiro não se atreveu. Então o cavaleiro enfurecido puxou sua espada e atravessou o peito do escudeiro. - Até hoje você pode ver, não muito longe do Sem Fundo, a rocha onde o cavaleiro matou seu escudeiro hesitante, e em eclipses solares é possível ver, aqui e ali, as gotas do sangue derramado sobre a pedra.
O cavaleiro esperou o sol subir até que a espessa coluna de vapor só escondia o meio dessa região amedrontadora. Ele viu diante de si um lago que crescia à medida que a névoa se acumulava em seu meio, e finalmente encontrou em suas margens a manjedoura na qual seu cavalo de guerra tinha passado a noite, e dentro dela estavam - oh milagre! - as luvas que sua amada lhe havia presenteado.
Imerso em pensamentos profundos o cavaleiro estrangeiro olhou fixamente para as suas luvas.
Seus pensamentos foram interrompidos por uma gritaria. Ele ergueu o olhar. O sol tinha alcançado o meio do céu e acabado com a coluna de vapor. - Então ele viu que o telhado do castelo que afundava estava coberto de pessoas aterrorizadas que subiam cada vez mais no telhado conforme a água do lago se aproximava. Julgando pela roupa que usavam o cavaleiro reconheceu oito cavaleiros e doze escudeiros.
A gritaria mais alta de "Ai socorro!" vinha de uma mulher gorda e feia com olhos e cabelos vermelhos como o fogo. Para ter as mãos livres ela, em seu terror, colocou um grande molho de chaves ao redor de seu pescoço, pois essa malfeitora era responsável pelas chaves dos porões, abóbadas e cômodos subterrâneos do castelo dos ladrões, nos quais ela atirava as vítimas assassinadas pelos ladrões.
Então uma visão horrível foi revelada ao cavaleiro. Inúmeros cadáveres dos apunhalados e estrangulados subiram, um atrás do outro, no telhado pelo lado oposto e olharam rosnando para os malfeitores aterrorizados, que não ousavam olhar nem para cima nem para baixo. Os cadáveres se levantaram e bateram em seus agressores com suas mãos ossudas e as correntes que carregavam.
A primeira a cair na torrente foi a mulher que tinha o molho de chaves no pescoço, e em um piscar de olhos ela foi transformada em um enorme pimpão. Então os cavaleiros ladrões foram derrubados. Eles tranformaram-se em lúcios com seis pernas no momento em que tocaram a água. Por fim os escudeiros caíram aos berros e tornaram-se carpas, sem perder o seu tamanho e seu peso originais.
Assim, há séculos os lúcios esfomeados perseguem até hoje as carpas e o pimpão no Sem Fundo, sem calma ou descanso. Quando o cansaço torna-se maior que a fome, os cadáveres nas profundezas os perseguem.
Hoje em dia os habitantes da região às vezes vislumbram na superfície dos lago carpas cobertas de musgo que parecem ilhas flutuantes, além do peixe-dourado gigante com olhos vermelhos como o fogo e o molho de chaves ao redor do pescoço. Em um momento, porém, eles mergulham novamente, assustados por seus perseguidores.